Vitrines Da Vida

Peso na consciência

Ainda posso me lembrar da primeira conversa quer tive sobre o assunto. Eu estava sentada em frente à escada do prédio de uma amiga e ela havia comentado que vira um filme no qual as meninas diziam que podiam comer o que fosse que nunca engordavam.Eu tinha 11 anos na época. Era gordinha de bochecha rosadas. Como não tinha entendido o espírito da coisa, perguntei: “Mas como é possível?”. Minha amiga, aparentando mais experiência, virou-se e disse: “Ué? Elas enfiam o dedo na goela e vomitam”.
Aquela frase ficou na minha cabeça por vários dias. Eu sempre fui a gordinha a família, a única que era a bolinha, a cheinha e a engraçada, porque tinha que chamar atenção de alguma forma. Eu era uma criança, mas o fato de ser gordinha já mexia comigo. Minha avó dizia que eu não era elegante como minhas irmãs, minhas amigas já tinham alguns pretendentes. Ninguém queria ficar com a bolinha da turma: eu.
Naquela época, eu tinha o hábito de comer um cuscus com leite condensado que era vendido perto de casa. Um dia, após pensar semanas naquela história das meninas que enfiavam o dedo na goela, me tranquei no banheiro, abaixei a cabeça em frente ao vazo e enfiei meus dedinhos lá dentro para tirar o cuscus de dentro de mim. Não conseguia fazer sair nada, pois não sabia como induzir o vômito, mas persisti e no final consegui.
A minha primeira sensação foi de alívio por ter conseguido. A segunda foi de peso na consciência por ter feito aquilo. A terceira, que eu nunca imaginei que viria, foi a fome praticamente instantânea. Senti um vazio na barriga e só pensava em comer algo. Foi o que fiz. Peguei um pacote de biscoitos e comi inteirinho. Em seguida, voltei a vomitar. Este processo se repetiu diversas vezes por dias. Eu tinha a sensação de que tinha descoberto a pólvora: podia comer e nunca mais engordar. Eu era uma criança, me achando o máximo com o feito.
Os anos foram passando e eu continuava com esta mania. Fazia dietas e quando comia demais vomitava tudinho. Em seguida me olhava no espelho e levantava a camisa para ver se minha barriga estava pra dentro, como deveria estar. Fiquei bem magra. As pessoas me elogiavam eu ficava sem graça porque não podia contar para ninguém o segredo da minha dieta. Imagina eu dizer que vomitava toda vez que comia demais, quando estava em casa de bobeira e desandava a comer tudo que via pela frente, sabendo que isso não ia interferir, pois vomitaria tudo novamente?
Comecei a ficar muito deprimida e culpada com todo esse processo. Primeiro gastava o dinheiro da mesada, pois ainda não trabalhava, para comprar muitas besteiras, depois comia tudo escondida e em seguida vomitava e tornava a comer novamente. É uma espécie de ciclo sem fim. Eu me sentia uma bulímica fajuta, pois não fazia isso com tanta frequência no início. Nessa época, eu já tinha 15 anos, estava magra, e mantinha essa prática há quatro.
Aos 18 anos, arrumei um namorado, que é meu marido hoje. Ele era mais velho e me levava para jantar em restaurantes ótimos. Depois íamos para a casa dele, eu sempre dava um jeitinho de fugir da cama e vomitar nosso maravilhoso jantar. Vomitava quietinha no banheiro e quando ele perguntava se estava tudo bem eu dizia que era uma dor de barriga ou estava penteando o cabelo. Com lágrimas nos olhos e cansada do esforço feito, sentava no chão do banheiro e chorava. Não entendia porque não conseguia parar de fazer uma coisa que eu mesma havia começado. Eu estava magra, bonita, com um namorado lindo e não conseguia mais parar de fazer aquilo. Acordava geralmente com rosto inchado, meus dedos da mão descascavam por causa do ácido do estômago. Minha voz é rouca e fumo compulsivamente depois dos vômitos, acho que é para disfarçar o cheiro de mim mesma.
Com o tempo fui descobrindo vários truques. Tem alimentos mais fácies de se vomitar do que outros. Quanto mais difícil for a indução do vômito, mais dor de cabeça sentimos depois. São tantos macetes que prefiro nem descrevê-los para não alimentar ideias em quem faz ou pensa em fazer isso. Com os anos, fui assistindo a filmes sobre o assunto, li alguma coisa aqui outra ali, mas sempre me achei uma bulímica fajuta, achava que não me encaixava nesse esquema.
Até que um dia que em um ato de desespero, depois de ter comido e vomitado mais de cinco vezes em uma tarde, falei com minhas irmãs e melhor amiga sobre o assunto. Elas ficaram meio sem reação, mas tentaram ajudar. Fomos a uma reunião dos comedores compulsivos anônimos, mas não me adaptei a eles porque ele só comem, não vomitam.
Hoje tenho 29 anos e continuo bulímica. Procuro não fazer dietas para que esse ciclo não volte. Na semana passada, aconteceu uma reunião na minha casa. Minhas irmãs me disseram que eu só falava sobre estar gorda e deveria, portanto, fazer uma dieta. Foi aí que tudo voltou. Contei para elas que tinha medo de voltar a fazer dieta e ter de vomitar novamente.
Meu marido, que pegou o bonde andando, só me viu chorando e depois que todos se foram, veio me questionar se eu era feliz com ele. Quis saber o porquê estou sempre triste, porque reclamava tanto Já estava tão cheia de tudo que escondi minha vergonha não sei onde e contei que durante estes 11 anos que estamos juntos, nunca deixei de vomitar. Que minhas dores de cabeça são consequência dos vômitos, que quando ele chega em casa e eu estou com cara de cansada ou de choro é porque geralmente acabei de vomitar. Falei que as minhas tonturas são de tanto comer e vomitar, que meu humor às vezes é péssimo porque me fecho nesses pensamentos. Disse que quando estamos em uma festa onde todos comem e bebem e minha única preocupação é saber se há um banheiro por perto para que eu possa vomitar. Ele ficou chocado e aliviado ao mesmo tempo, ficou feliz por eu ter tido a coragem de falar tudo pra ele.
Estou procurando tratamento. Comecei a fazer terapia e não vomito há dois meses. Estou cansada de conviver com esta sombra que não me deixa ser feliz. Já morei fora, troquei de emprego tive férias maravilhosas, mas nunca vivi isto tudo com a intensidade devida. Induzi vômitos na lua de mel, no trabalho novo, depois de um jantar em um restaurante de luxo. Foram muitos vômitos antes de fazer amor com meu marido. Cansei. Com a ajuda dele e minha vontade, vou superar isto.

(*) O nome e a profissão foram mudados a pedido da entrevistada
Matéria Publicada na Revista Marie Claire( editora Globo)

COMENTE

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.