As Belo-horizontinas

A viúva do Prado

O Prado é um dos bairros mais tradicionais de Belo Horizonte, está profundamente ligado à história da fundação da capital mineira. Pela rua Platina passaram as carroças que trouxeram material usado para construir a cidade. O nome do bairro foi recebido por causa do primeiro hipódromo da capital mineira, o “Prado Mineiro”, inaugurado, em 1909, pelo então prefeito Prado Lopes.
Com a retração deste tipo de esporte, o antigo hipódromo deu lugar a um campo de futebol, onde eram disputados jogos do campeonato mineiro. Além das provas de turfe e futebol, o Prado Mineiro ficou também conhecido por ter sediado o primeiro voo oficial de avião da cidade. Avião, àquela época, era totalmente desconhecido da população, fora visto antes unicamente no cinema.
Dessa época para cá, muita coisa mudou.
O tempo, as chegadas e as partidas aceleram essas mudanças.
Hoje diversas ruas desse tradicional bairro se tornaram ponto de concentração do comércio, principalmente as confecções, e no lugar onde funcionou o antigo hipódromo, existe a Academia de Polícia Militar de Minas Gerais.
O traçado estreito e irregular das ruas do Prado se estende pelos bairros vizinhos. Boa parte das casas ainda mantêm pequenos quintais com jardins, inspiração para a aparente calma e tranquilidade do lugar, apesar do crescimento precoce.
A ocupação desenfreada do comércio acendeu a revolta nos moradores mais antigos, mas muitos ao morrerem deixam herdeiros que desfazem dos imóveis colaborando assim com a nova roupagem da região.
E numa rua esquina com a Platina mora a viúva do Prado, mulher cheia de estilo. Parece até uma madame.
Com quarenta e poucos anos, se casou no findar da puberdade, depois de ter aprontado coisas que até o diabo dúvida, tudo abundantemente discreto, segredo dela e dos homens que a tocavam sem respeito algum.
Conheceu Juvenal.
E logo se encantou, foi atinada pela cobiça, se encantou pela vida que ele podia lhe proporcionar, pois o moço tinha fama de rico, formara-se em Direito e tinha planos de ser um advogado bem sucedido.
O que Lucinha, hoje viúva, não sabia é que o futuro marido era tão “fudido” quanto ela, vivia nas mesmas condições da família dela, só de aparências.
Pois bem, casaram pouco tempo depois. Evento que chamou atenção de todo o bairro, afinal, na época havia também afeto e familiaridade entre a vizinhança. O enlace ocorreu na principal igreja da região, hoje ponto de referência.
Os sorrisos estampados nos rostos.
A entrada do noivo. A entrada dos padrinhos. A entrada das damas.
A entrada da noiva.
A troca de alianças.
Mal sabia ele que aquela aliança se tornaria pior do que algemas.
A festa foi abastecida de comes e bebes para os convidados se empanturrarem e até levar algo, se quisessem.
Tudo fora primoroso.
A vida dos pais do noivo foi melhorando e no final da trajetória tinham diversos imóveis na região.
Ao contrário do esposo, Lucinha morria de vergonha do pai que tinha uma carroça de pães, o que não sabia é que a população adorava ter o pão todos os dias na porta sem precisar de casa.
E as temporadas passaram.
Tiveram quatro filhos, dois casais.
A carreira de advogado de Juvenal tinha algumas causas trabalhistas que lhe rendia bons frutos, algum tempo depois, herdou um dos imóveis do pai. E seu fracasso social fora vencido pelo trabalho. Dia e noite praticamente.
Lucinha era ciumenta, esbanjadora e metida, seus exageros se compendiavam a bons jantares fora, em cada um aparecia com um vestido luxuoso, nada barato. Passou a ser enxergada e respeitada como a rica do Prado. Vez e outra, enquanto o marido ganhava mais dinheiro para ela gastar, se envolvia com um dos amantes antigos.
Sempre havia uma desculpa e a relação acontecia lá mesmo na casa do casal.
__ Amanhã, tenho que mandar trocar as lâmpadas – e o eletricista se realizava.
E toda semana a casa carecia de alguma manutenção.
Nas paredes.
No jardim.
No banheiro.
Na cozinha.
Fora isso, Lucinha tivera um casamento feliz, pelo menos para si, pois se casara com um homem que a amava intensamente, que lhe dedicava todo seu viver.
Ele até percebera algumas coisas, mas sentia-se numa redoma de vidro, perdera sua juventude e sua liberdade.
Ela era um bem que só lhe fazia mal.
O tempo foi passando, os filhos crescendo e Juvenal trabalhando feito burro no campo. Burro de carga.
Dezessete anos de trabalho. Chegava em casa e Lucinha vinha dissimulada lhe cobrir de carinhos. Fingia com requintes, afinal se casou só por interesse, nada mais.
Numa tarde chuvosa, Lucinha recebeu uma ligação. Partiu depressa sem dizer nada a ninguém, pegou o carro e dirigiu com calma imaginando mil coisas.
E a notícia que recebera parecia uma vingança vinda a cavalo. Golpe do destino.
Chegara a hora de pagar a conta e com juros abusivos.
__ Ele tem pouco tempo de vida, não posso ser preciso de qual será esse tempo – avisou o médico, sem rodeios.
Foi tempo o suficiente para Juvenal pegar de volta o que era seu. Aquela doença lhe fez gastar consigo mesmo tudo que tinha. Não restara nada, somente o imóvel; era justo que ficasse para os filhos.
A família começara a passar por limitações.
Lucinha logo deu um jeito de começar a trabalhar.
Ia para o trabalho pensando no que fez ao seu marido, pois nunca se preocupou com ele, nunca cuidou dele, não cumprira o mandado de um casamento.
Cumplicidade, fidelidade, companheirismo…
Nada ela fez.
Lucinha pensou somente em si mesma, nem aos filhos deu amor, deixara-os aos cuidados de uma “ama”.
Agora, chegara a hora de colher o que plantou.
Quisera vir um dilúvio que extinguisse essa lavoura.
Ela precisava purificar sua consciência, Juvenal nem saia mais da cama, necessitava de cuidados derradeiros, alimentação na boca, troca de fraudas e tantos outros.
Um ano depois, Lucinha se cansou de tudo isso. Levou-o para o banho e cometeu a sua libertação.
__ Chega, desgraçado, você roubou tudo meu – chorava desesperadamente.
Juvenal morreu nessa mesma noite.
Lucinha fora teatral, tão perfeita que qualquer emissora de TV a contrataria para protagonizar alguma novela. Tornou-se a viúva padecida, dedicada. Padecida por causa da perda.
Hoje continua vivendo de aparências.
Fazendo tudo o que fazia antes.
Sem ninguém saber.

1 COMENTÁRIOS

  1. – Como não falar da Obra sem falar do Autor?
    Há um tempo venho acompanhando o trajeto literário de Silvio Cerceau.
    Confesso, este novo conto expõe mais uma vez a sensibilidade, a sutileza e experiência do jovem Escritor, um Alquimista das Letras! Seus romances e contos inspiradores, nos mostra uma realidade fática e dentro dela, verdades obscuras e cristalinas, muito além de si mesmas, moldando o contexto literário numa escultura bela e detalhada. Prima o Autor pelo zelo, tecendo segredos a serem descobertos pelo leitor. E assim, segue a narrativa, deste e dos demais publicados por Silvio Cerceau, que expõe o âmago de suas personagens, explícitamente, sem censuras, numa realidade envolvente, que ao final, se mistura com a própria essência da nossa imaginação. Parabéns!
    Como algo pode ser simples e complexo ao mesmo tempo, e como isso pode ser reconhecido dentro de sua vida cotidiana.Não espere mais se ainda não leu, e se já leu, releia, sempre há algo de novo em tudo que vê porque até mesmo uma verdade esconde outras verdades dentro de si, que revelam cada vez um mundo novo, imperceptível a primeira vista, mas existente, vivo e pulsante.Vá atrás desse mistério enquanto é tempo e entre nessa aventura mística sem medo do que vai descobrir e vivenciar. Recomendado e aprovado, agora falta você comprovar também.Que a borboleta guie seu caminho.

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